CAJUEIRO SÊCO*
Publicado em 30 de setembro de 2005
Este trabalho surgiu de um contato direto com o problema de habitação para as classes menos favorecidas. Não tivemos o intuito de estudar mais uma vez um tipo de casa barata, para ser distribuída entre populações marginalizadas; partimos, antes, do princípio de que a casa é o efeito e não a causa do desequilíbrio social e econômico e, assim sendo, deve ser encarada como espelho de uma realidade. O fator importante é a recuperação do homem, através do trabalho, da saúde e da instrução. À medida que ele e a sua família gradativamente venham a adquirir poupança e confiança no futuro, a casa também sofrerá as transformações correspondentes.
Durante o contato direto com os grupos que construíram suas casas, segundo o processo de auto-ajuda, nos lotes do conjunto de “cajueiro seco”, surgiu a idéia de racionalizar o uso da taipa e mesmo pré-fabricá-la.
A cooperativa local de materiais oferecia meios para a construção de casas de alvenaria de tijolo, porém a maioria dos atendidos afirmava não conhecer sua técnica, nem possuir recursos para utilizá-la.
De fato, o processo construtivo em alvenaria de tijolo, ou em bloco de cimento, além da diversidade de materiais a empregar, exige ferramentas, fundações, andaimes, prumo, amarrações, e uma técnica construtiva, ao passo, que a taipa, em sua forma rudimentar, permite o emprego, como de mão-de-obra, de toda a família – mulheres e crianças – ficando a cargo de especialistas alguns acabamentos, como a colocação das portas e janelas e, em alguns casos, da cobertura.
A taipa – “barro armado”, “casa de sopapo”, ou outra qualquer de suas designações- representa uma maneira de construir conhecida de nossas populações urbanas e rurais. Está no nosso passado na maioria das construções das cidades coloniais e persiste ainda hoje nas construções rurais.
O arquiteto Lúcio Costa, na memória do anteprojeto para o conjunto residencial de Monlevade, ao recomendar uso dos “pilotis” considerou que este, ao permitir o emprego acima da laje – livre portanto, de qualquer umidade – de sistemas construtivos, econômico e independentes da subestrutura como, por exemplo, – sem nenhum dos inconvenientes que sempre o condenaram – aquele que todo o Brasil rural conhece: o “barro armado” (devidamente aperfeiçoado quanto à nitidez de acabamento, graças ao emprego de madeira aparelhada, além da indispensável caiação); uma das particularidades mais interessantes do nosso anteprojeto é, precisamente, essa de tornar possível – graças ao emprego da técnica moderna – o aproveitamento deste primitivo processo de construir, quiçá dos mais antigos, pois já era comum no baixo Egito, e tem ainda a vantagem de simplificar extraordinariamente a armação da cobertura, aliviada pelos “pés-direitos da própria estrutura das paredes internas”.
Da observação da utilização da maneira em que uma casa de taipa, construída segundo a maneira tradicional, verificamos, de imediato, que racionalizando a fabricação dos entreliçados, subdividindo a madeira empregada, dando-lhe melhor aproveitamento, chegaríamos à duplicação da área vedada, com emprego da mesma quantidade de material. A fabricação em série de poucos tipos de painéis, permite uma construção variada e fácil, dentro das disponibilidades econômicas e do interesse de cada família.
O processo seria dividido em duas partes: fabricação e montagem. A fabricação representada por uma linha industrial, na qual a madeira seria desfiada em dimensões exatas, montadas em mesas gabaritadas, fixas entre si nos entreliçados, por meio de grampeadores, tratada e imunizada. A montagem seria individual. Por meio de uma folha de papel quadriculado no módulo dos painéis, qualquer um poderia estudar a sua casa (planta e elevações), adquirir os painéis e demais peças. Cordel, arame ou prego, proporcionariam as amarrações. Portas e janelas seriam executadas dentro dos mesmos padrões.
Para a cobertura julgamos possível o emprego de uma esteira de palha ou capim, tratado em pequena fábrica, e fornecida em rolos.
Também uma pequena fábrica de artefatos de cimento, resolveria a parte de “bloco d’água”, em que poderiam ser fornecidos conjuntos sanitários, em concreto vibrado, e coloridos pela tinta protetora.
Assim também poderão ser estudados, os demais componentes de uma habitação e fornecidos, para serem montados, com a utilização da própria família como mão-de-obra de construção.
Costume este, aliás, comum, em nosso meio rural, de onde provém em sua maioria, os que lotam as áreas de mocambos.
Leis e regulamentações atrasadas a respeito do standart da vida moderna, considerações absurdas ou feudais, concepções folclóricas das verdadeiras necessidades do homem, baixo teor da vida econômica, escassa organização da indústria da construção, preparo insuficiente de falsos competentes, ou rumos políticos confusos, estorvam ou impedem a afirmação humana, ampla e integral, do problema da habitação popular.
É o pensamento filantrópico que determina num primeiro tempo o caráter da habitação popular. Quando a sociedade quer coligar as realidades das consciências individuais aparentes (que acordam em cada espírito com precisos imperativos morais), a valores inseridos no quadro da vida de todos, as necessidades das classes menos favorecidas que se encaminham, a uma precisa função produtiva, não pode ser ignoradas, mesmo se a economia capitalista procura, pela sua própria natureza, a desvalorização destas necessidades.
Precisa combater, não o fenômeno ‘urbano’, mas aquilo que no fenômeno ‘urbano’ está errado, isto é, o princípio da especulação que conduziu milhões de homens a habitar em poucos metros quadrados, sem ar e sem sol, às vezes sem água e quase sempre sem a menor superfície ao ar livre. É necessário conduzir o problema às origens: primeiro o homem, a casa e seu meio de sustentação, depois a Cidade.
* Texto publicado na Revista in Mirante das Artes, Etc.n°. 2, março e abril, 1967